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Lições de vida da necropsia pt. 1 de 2

Quem me acompanha sabe que eu comecei um curso de auxiliar de necropsia no final do ano passado. Prometi falar sobre esse curso aqui no blog também em 2019, mas decidi esperar, com receio de me expressar de forma errada. Foi bom que eu esperei, porque agora em março, completando quatro meses de curso, me sinto mais à vontade para falar sobre como a experiência me mudou.


As pessoas com mais vivência (leia-se, quarentões como eu) sabem que há mudanças que precisamos nos esforçar para fazer em nós mesmos, e há mudanças que acontecem de forma tão brusca que sentimos que da noite para o dia parte da nossa essência sofreu uma metamorfose profunda e sem dor.


Um exemplo disso, na minha vida, era a dificuldade que eu tinha em estabelecer limites nas minhas amizades. Eu doava demais, quase como uma mãe, para todos os meus amigos. Eu me envolvia em seus problemas pessoais, me colocava em risco para dar caronas de madrugada para que eles não corressem risco, eu abria minha casa para receber aqueles que haviam brigado com os pais, eu alocava o tempo que deveria ter passado comigo mesma ou com minha família para ficar com eles, dar conselhos e me envolver diretamente em suas vidas. Pode parecer uma qualidade, mas esses relacionamentos nunca foram recíprocos, de maneira que eu doava tudo e recebia muito pouco em troca.


Era explícito, para mim e todos ao meu redor, que essa forma de me relacionar estava me prejudicando, mas eu nunca consegui de fato mudar isso em mim. É um aspecto da minha personalidade, acabei admitindo, faz parte de como eu fui construída. Então, em algum momento, eu parei de tentar mudar. E por décadas, eu persisti no erro de me dedicar, sem controle, aos meus amigos.


Eu não sei dizer exatamente quando a mudança ocorreu, mas ela não foi resultado de um esforço consciente. Um dia eu acordei e percebi que aquela vontade de me envolver nas vidas dos meus amigos simplesmente não estava mais lá. Só posso descrever a sensação como acordar e ouvir a notícia de que um membro doente, infectado e do qual eu não precisava havia sido cirurgicamente removido, sem deixar sequelas. O que eu senti foi alívio. Eu continuava me importando com meus amigos, mas consegui entender que os problemas deles não eram meus, e que eu podia estar lá por eles, ajuda-los e dar apoio sem destruir minha própria vida no processo. Foi um afastamento saudável que mudou, de forma imensurável, minha qualidade de vida, minha saúde mental e minha vida familiar. E sim, depois de décadas de esforço, ele aconteceu “do nada”.


Tudo isso para dizer que, por muitos anos, eu entendi a filosofia de abraçar a morte como parte da vida. Eu li sobre a morte, fiz reflexões sobre a aceitação da morte e notei que, de fato, eu nunca tive medo de morrer. Mas existe um abismo entre a compreensão de uma teoria, no reino das ideias, e a aceitação plena dela, que só existe por meio do exercício diário de transformá-la em prática. Um exemplo simples do que eu estou dizendo: nós, mulheres, começamos um movimento de aceitação do nosso corpo como ele é, porque a busca pela estética imposta pelos padrões está – literalmente – matando a gente. São cirurgias, procedimentos doloridos e perigosos, compulsão alimentar, desequilíbrio na rotina de exercícios, distúrbios alimentares, problemas sexuais e milhares de reais, apenas para se encaixar no padrão. Só que muitas de nós, que compreendemos a filosofia do movimento body positive, ainda não conseguimos abraçar nossas imperfeições. Vira um discurso “eu me aceito como eu sou, eu sou perfeita assim mesmo, eu me amo”, mas diante do espelho, as lágrimas brotam e o discurso não ajuda.




Portanto, mesmo sabendo que a morte é parte natural da vida, que todos morremos e devemos aproveitar todos os dias como se fossem os últimos – é difícil viver com gratidão e intensidade quando temos contas para pagar, casa para limpar, filhos para cuidar, trabalho para entregar e provas para as quais estudar.


É aí que entra esse curso na minha vida e a mudança súbita e intensa que ele provocou em mim e me salvou.


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