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Foto do escritorCláudia Lemes

Lições de vida da necropsia pt. 2 de 2

Como vou reagir ao ver uma necropsia? Eu me perguntei, indo para casa com a inscrição – e o peso de ter pagado o material à vista – em mãos. Eu sabia que iria reagir à morte nesse curso, mas não esperava que minha vida inteira fosse mudar.


Eu escrevo ficção policial e de terror com detalhes vívidos. Eu sou apaixonada por vampiros desde os 7 anos. Eu tive minha fase gótica-fã-do-Peter-Steele na adolescência. Eu sou praticamente uma expert em serial killers. Eu já sobrevivi a uma guerra, dois terremotos, relacionamentos abusivos e à morte de muitos entes queridos. Eu não pedi anestesia, nem gritei, durante meu parto natural. Eu trabalho desde os 17 anos e sempre me sustentei. I got this. Esses eram os mantras que eu recitava ao me inscrever no curso de auxiliar de necropsia numa noite de outubro em 2019. A soma dos mantras era: “eu dou conta disso, eu sou forte”.


Mas uma pessoa que precisa recitar esses mantras tem dúvidas, é claro. A verdade é que você só vai saber como reage a alguma coisa quando o momento chega. E por baixo da postura badass, eu sou uma pessoa hiper-sensível desde que meu primeiro filho nasceu. É claro que eu estudo serial killers, mas alguns casos me fizeram chorar. Eu já evitei escrever posts sobre alguns crimes porque todas as vezes que penso neles, eu passo o dia inteiro deprimida. Eu choro vendo filmes. Eu não gosto de imaginar pessoas ou animais sofrendo. Eu sou sensível, e não acho isso ruim.


O primeiro módulo do curso foi anatomia e fisiologia, que eu amei. O segundo, Medicina Legal. E estava tudo fluindo bem, até a professora explicar que antes de chegarmos à parte prática – as visitas às funerárias e ao IML, teríamos que nos acostumar com o procedimento da necropsia, então ela colocaria um vídeo para assistirmos.


Bora lá, pensei, um sorriso abrindo no rosto cansado naquele sábado de manhã. Eu imaginava que as necropsias aconteciam como nos filmes e livros que eu consumi em abundância durante minha vida – um corpo numa mesa de inox, cabeça apoiada num banquinho preto, um médico aparamentado com um bisturi na mão enluvada. Um corte em Y, devagar, a inspeção detalhada de cada órgão. Eu definitivamente não estava pronta para o que vi naquelas filmagens.




O vídeo mostrava um médico rasgando o couro cabeludo de um cara, traçando um arco. Depois, descolando – usando força extrema em vários golpes – o couro cabeludo do crânio. A cabeça do cidadão ficava balançando com esses movimentos bruscos, e a pele finalmente foi puxada para baixo, como uma máscara. Bom, eu vou poupá-los do resto do procedimento, mas vou usar alguns adjetivos para que vocês entendam a situação: bagunçado, rapidíssimo, brutal, selvagem. Um açougue é mais tranquilo e “limpo”.


A professora olhou para as carinhas desfiguradas dos alunos, parando na minha: “Ué, tem senha na morte também, tem uma fila de cadáver esperando, ele tem que ser rápido.” Meu almoço foi light aquele dia, e a sensação de choque com o aparente descaso com os mortos traduziu-se como uma leve náusea pelo resto do sábado.


É claro que a religião tenta colocar uma mão no nosso ombro e dizer “Mas é só a carne. O espírito daquela pessoa não está mais lá.” Não é de surpreender que quase todo mundo que eu conheço ou vejo nas redes sociais que pratica necropsia é extremamente religioso. Conviver com a morte de um jeito tão brutal é de enlouquecer qualquer pessoa que não tem a cabeça muito forte ou o conforto inocente da fé.


Mas eu não sou uma pessoa religiosa, por motivos que não precisam ser explicados aqui. E embora eu soubesse, num nível filosófico que sim, aquilo é só carne, não uma pessoa, e que sim, todos vamos morrer e blá, blá, blá, VER o humano ser tratado como nada além de um bloco de músculos, ossos e órgãos mudou minha perspectiva.


Assim como aconteceu com o lance das amizades (ver parte 1 do post), um dia, pouco depois daquela aula, eu acordei e alguma coisa estava diferente. Eu arrastei os pés pela casa e olhei meus filhos brincando e meu marido fazendo o café-da-manhã e pensei: puta merda, tudo é tão finito. Tudo é tão rápido. Tudo pode acabar a qualquer momento. E em vez de carregar essa sabedoria no reino das ideias, eu passei, naturalmente, a vivenciá-la. Eu parei de me estressar (com algumas recaídas, claro) com coisas pequenas. Na verdade, eu passei a mensurar a importância de tudo, de um jeito instintivo. Eu passei a realmente sentir gratidão, várias vezes ao dia, pela saúde de todo mundo que eu amo, pelos momentos triviais* com cada um deles, por cada refeição, por ter moradia, por ter conforto. Bum – do nada.


*“Acredite, nada é trivial”, Eric Draven, O Corvo



O interessante é que quando nada importa, tudo passa a importar. Nosso relacionamento com tudo que levávamos a sério sofre uma alteração divertida. Minha “carreira”, que eu levava super a sério, deixou de ser relevante. Eu percebi que quando eu for velhinha (se eu chegar lá), quero lembrar dessa época e pensar “porra, como eu me diverti escrevendo livros e sabendo que as pessoas os liam” e não “uau, eu fui muito bem-sucedida”. Eu quero pensar nesta época de exaustão e caos com filhos e sentir “como eu me divertia com aquelas crianças, como era bom abraça-los e beijá-los e brincar com eles e ler para eles dormirem e jogar videogame com eles” e não “que orgulho de ter mantido a casa arrumada e minha manicure intacta enquanto cuidava de três filhos”.


Poder acelerar sua vida para o momento da sua morte é receber, de uma só vez, todas as respostas de como você deveria estar vivendo. Poder colocar-se na situação da despedida e enxergar o momento atual como se fosse o passado nos dá todas as ferramentas emocionais para compreender o que é importante, o que merece nossa atenção, o que é digno de nosso desgaste e esforço. Por mais que compreendesse isso, eu não havia colocado esse intuito na minha vida cotidiana, mesmo depois de ter perdido minha mãe e outras pessoas que amava. De alguma forma eu precisei ter esse contato com a morte - na sua forma mais violenta - para acordar.


Eu não sou ninguém para dar lições de moral - sou tão imperfeita e insignificante quanto qualquer outra pessoa. Mas faço um convite para que você pense mais na morte e tente imaginar-se próximo dela. Quais arrependimentos você pode, por meio de suas ações hoje, evitar?


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