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Lições dos serial killers #2: Amor próprio, internet e mulheres "loucas"


Eu interagia muito no Facebook. Mesmo com uma vida agitada, eu dava um jeito de postar constantemente, conversar com meus amigos e seguidores, falar sobre livros e política e na verdade, qualquer assunto. De vez em quando, tinha que lidar com uma pessoa desagradável, mas quase sempre mantinha o diálogo num nível saudável. É claro que, ao ser insultada no meu perfil, como aconteceu algumas vezes, eu mandava, eventualmente, a pessoa à merda. Mas no geral, tudo era debate moderado e muita paciência. Aliás, minha paciência com gente chata virou até meme entre meus amigos.


Por isso foi uma grande surpresa quando, três meses depois de eu ter saído do Facebook, um colega escritor me disse que foi bom eu ter saído da rede social, porque eu me estressava muito. Achei aquilo curioso, afinal, se estávamos nos encontrando pessoalmente pela primeira vez, como ele sabia o que eu sentia nas minhas comunicações virtuais? Durante nossa conversa subsequente, eu percebi que não apenas esse colega, mas muitas outras pessoas, tinham uma imagem de uma Cláudia cuspindo enxofre, freneticamente batendo os dedos no teclado, revoltadíssima com qualquer mortal que ousasse discordar com ela. Ué.


Fui conversar com algumas amigas sobre isso, e elas basicamente disseram: “Eu acho que você tinha paciência demais no Facebook. Muitos otários falavam coisas absurdas para você, e mesmo quando todos os outros da discussão já tinham perdido a paciência, lá estava você, fazendo colocações com datas, estatísticas, fontes...”


Havia um abismo óbvio entre a forma como eu era percebida pelas mulheres e pelos homens. Eu aprendi, já na época do Orkut, a não me estressar tanto com tretas na internet, o que não significa que eu necessariamente fugia delas. A diferença é que, enquanto eu respondia tranquilamente às provocações na fila do supermercado ou enquanto fazia o almoço, com a pressão sanguínea baixa e um sorriso no rosto, os homens deduziram que, por estar respondendo, eu só poderia estar completamente surtada do outro lado da tela, obedientemente cumprindo minha função de “mulher louca”.


Esse estereótipo cansa. E também é perigoso, porque apavoradas com a possibilidade de nos encaixarmos na imagem da mulher mal-amada, estressada, nervosinha e descontrolada, acabamos sendo gentis em momentos onde a gentileza não tem vez. Acabamos nos silenciando nas horas em que precisamos nos defender. Quando provocadas, humilhadas e feitas de idiotas, nós temos o direito de revidar. E quase todas nós conhecemos o olhar de triunfo no rosto de um provocador quando finalmente perdemos a paciência. “Caaalmaaa...”, eles dizem com um sorriso de deboche.


A verdade é que eu saí do Facebook porque recebia, todos os dias, notícias de crianças e mulheres agredidas, torturadas, estupradas e assassinadas. Não era apenas uma questão de fazer ajustes nas configurações do site; eu interagia com milhares de pessoas e lidava rotineiramente com uma realidade que destruía todas as possibilidades de eu ter um dia feliz. As pessoas deduzem que por gostar de estudar crimes, estou sempre pronta para lidar com eles. O que poucos entendem é que para fazer um curso sobre sexologia forense, ou para ver vídeos de necropsias ou olhar as fotos das cenas de crime do Jeffrey Dahmer, eu havia antes me preparado psicologicamente. Eu havia tido conversas comigo mesma e escolhido momentos em que me sentia forte o bastante para isso. Não é a mesma coisa do que despedir-se dos seus filhos pela manhã com beijos e sentar-se para trabalhar com uma xícara de café e... lá está: “Meninos pequenos são sequestrados por grupos terroristas, fantasiados de meninas e estuprados por soldados”. Eu não sou o tipo de pessoa que consegue lidar com uma manchete dessas às sete horas da manhã. Eu não consigo esquecer isso e seguir minha rotina. Manchetes assim me destroem. E isso estava acontecendo todos os dias.


Assim que reconheci os sinais da depressão, eu percebi que teria que sair da rede social. Eu passei a ficar irritadiça, pesada, sem ânimo para conversar, comer ou trabalhar. Eu não queria ver ninguém, o que é um problema sério quando se compartilha um apartamento pequeno com três crianças, um homem, um gato e uma cobra. Eu continuei sorrindo para as fotos e fazendo piadas, mas minha falta de vontade de continuar vivendo virou uma fonte de preocupação para minha família.


O único motivo pelo qual eu relutei foi minha carreira de autora. Sair da maior rede social do mundo, se você é um autor independente no Brasil durante a maior crise do mercado editorial é praticamente suicídio profissional. E mesmo assim, eu escolhi sair. Além de mim mesma, minha depressão estava afetando minha família, e eventualmente ia contaminar meus amigos e meu trabalho. Eu precisava ser responsável e achar maneiras criativas de continuar relevante para meus leitores através de outras mídias; outras redes, meu website, eventos, etc.


Mas clicar em Excluir Conta não é o suficiente para tirar uma mulher de uma depressão. Eu sei que neste momento você deve estar gritando para a tela: “você precisa fazer terapia!”, mas eu não estava pronta para terapia. Ainda tinha questões mal resolvidas por ter tido uma psicóloga péssima no passado, e não sentia que era hora de voltar para um consultório. Em questão de dias eu já havia me adaptado à realidade mais leve que vem com a ausência na rede social azulzinha, não era mais bombardeada com as notícias bizarras da política do meu país, e principalmente, não precisava mais ler o “crime do dia”. Mas a depressão, como um manto cinza nos meus ombros, ainda pesava em cada passo que eu dava.


Um dia eu estava no meu sofá, fazendo uma tradução. Já era a sétima ou oitava hora de trabalho ininterrupto, e percebi que havia bebido Coca Zero demais e precisava ir ao banheiro. Eu raramente me olho no espelho, e quando naquele momento eu cedi à tentação, deparei-me com uma mulher que não reconheci. Os cabelos estavam desgrenhados, as olheiras me faziam lembrar de um crânio, os lábios estavam ressecados e minha pele um mapa mundi branco e avermelhado. Minha silhueta era redonda, meus ombros caídos como se o peso do universo estivesse sobre eles. Tive um flashback; eu aos 22 anos passeando numa galeria nos EUA, com a pele dourada do sol, os longos cabelos loiros sedosos balançando com o meu rebolar, e um casal parando para conversar comigo. “Somos de uma agência de modelos” disseram em inglês, e se apresentaram. Não quiseram conversar comigo, e sim com minha mãe, mostrando catálogos e cartões de visita e explicando que a empresa era idônea e não exigiam nenhum tipo de pagamento, que na verdade recrutavam modelos e as pagavam pelas headshots, as fotos que usariam para nos agenciar. Convidaram minha mãe e meu tio para conhecer a empresa e me acompanhar nas sessões de fotografia. Eu recusei, pois já sabia que a vida das modelos não era nada parecida com o que eu queria da minha. Mas aquela validação da minha beleza marcou a época em que, ao entrar em qualquer lugar, todos os olhos se viravam para mim.



Se você ainda não assistiu Queer Eye, ASSISTA
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Aqui estava eu, dezessete anos depois, sem reconhecer meu próprio reflexo. Em meio aos soluços, eu sabia que deveria me amar sem me apegar às aparências, que deveria me achar bonita não importasse o que os padrões de beleza ditavam por meio das revistas e rótulos de produtos e outdoors gigantescos. Mas a verdade é que eu odiei o que vi. E numa análise sem medo e sem preconceitos, eu percebi que essa decepção ia muito além da vaidade, que sempre tentei evitar. Era uma questão de carinho. Eu perdera, em algum momento na década anterior, entre fraldas e prazos e faxinas e lançamentos, o hábito de me dar carinho.


Eu não precisava de um makeover; de amigas dando gritinhos e passando blush no meu rosto, jogando minhas roupas no lixo e trocando um prato de batata fritas por uma salada. Eu precisava transformar em hábito tirar alguns momentos para respirar fundo e fazer algo para cuidar do meu corpo com amor.


"Fazer algo por sua saúde física tem um impacto gigantesco na sua saúde mental." - Bobby Berk, Queer Eye

Começou à noite. Antes de dormir eu passei a limpar meu rosto, usar máscaras e cremes. E esse cuidado básico, algo que eu nunca me dera ao luxo de fazer, foi tão gostoso que aos poucos acrescentei outros à minha rotina; fazer as unhas uma vez por semana, usar um pouco de maquiagem para ir ao mercado ou buscar as crianças na escola, cuidar dos meus pés, hidratar meu cabelo. Eventualmente, ao perceber que quando meu corpo recebia toques amorosos meu interior reagia de forma positiva, eu passei para o próximo nível: exercícios.


Sabe aquela frase “Eu me tornei aquilo que mais odiava?”. Bem, quase cheguei lá. Embora eu não tenha o perfil da pessoa que acorda às cinco da manhã para correr, eu consigo compreender que me exercitar é uma forma de me amar e de cuidar da minha saúde. Como todas as pessoas autodestrutivas, até a palavra saúde me causava certa aversão.


Comecei a fumar aos quinze anos, almocei coxinhas no trânsito de São Paulo todos os dias por dois anos, e sempre esperei que ao olhar resultados de um eventual exame de sangue, um médico chamaria um padre para me dar a extrema-unção. Mas uma hora a gente precisa crescer e parar de romantizar o lifestyle Ozzy Osbourne, principalmente se temos pessoas que dependem de nós.

Ficar sem minha mãe aos 34 anos me deixou com marcas profundas e não quero que meus filhos passem por isso. Comecei a caminhar diariamente na praia pelas manhãs, e iniciei uma reeducação alimentar que me fez perder sete quilos em três meses, de forma saudável e sem nenhum tipo de vontade, recaída ou sensação de culpa. Melhor ainda: ao ver meu corpo mudar e um sorriso substituir minha carranca, meu marido entrou no novo ritmo comigo e também está aprendendo a cuidar dele mesmo, fazendo natação e comendo melhor.


Mas sua mensagem não é... fútil?


Eu não acho que ainda chegamos num estágio onde conseguimos, como mulheres, ser completamente imunes à cultura que dita o que é bonito e o que não é. Quando não conseguimos encontrar num shopping inteiro uma única peça de roupa que nos serve, é difícil sentir-se bonita. E eu sei que quando as mulheres conseguirem se aceitar como são, a cultura vai sofrer as mudanças proporcionais, e o mercado não vai ter como sobreviver sem seguir essas mudanças. Mas eu não tenho como me salvar se transformar meu corpo num cartaz de manifestação. Não hoje. Mulheres mais sábias e fortes conseguem, mas meu momento ainda não chegou. Talvez a futilidade esteja nos olhos de quem queira ver futilidade e esse rótulo seja tão nocivo às mulheres quanto ditar a aparência que devem ter.


Situação de vida: Depressão


Lição do serial killer: Psicopatas são geralmente narcisistas, pessoas que se acham superiores aos outros em diversos aspectos de suas personas. Muitos, como Ted Bundy, se achavam mais espertos do que seus próprios advogados. No intuito que ficar o mais longe possível do narcisismo, às vezes nos afastamos da vaidade. Mas olhar para si com amor e cuidar de si mesmo como uma expressão de carinho não precisa ser narcisismo ou futilidade. A diferença está na motivação. Amar-se para conseguir sobreviver e superar uma depressão não é motivo de vergonha e muito menos sinal de egoísmo.

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