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4 Lições do filme "Yesterday" para escritores

E por que Paul McCartney sugeriu que o filme se chamasse “Ovo Mexido”


Obs: Dá para ler sem tomar spoilers porque quando eles aparecem, eu aviso, mas é um post bem melhor para quem já viu o filme.


Nesse domingo pude finalmente assistir ao filme “Yesterday”, aquele no qual o mundo inteiro – exceto um rapaz – esquece que os Beatles existiram e consequentemente, as dezenas de canções clássicas da banda, também. O filme superou minhas expectativas, por conter mensagens muito próximas dos corações de quem faz qualquer tipo de arte, seja compor, cantar, escrever, pintar...


Decidi transformar meu “review” do filme numa lista de 4 lições que eu tirei dele. Mas antes, uma curiosidade: a equipe levou o filme até Paul McCartney para ter a benção dele, que diz ter gostado do filme, mas teria chamado de “Scrambled Eggs” (ovo mexido em inglês), em vez de Yesterday. Na época de produtividade alucinante em que Paul e John precisavam fazer turnês, gravar e compor, nem sempre a inspiração vinha de acordo com a necessidade. Sendo assim, muitas vezes a melodia de uma canção chegava antes da letra. Paul tinha a melodia de Yesterday na cabeça, mas não a letra. Ele sabia quantas sílabas queria, então cantava “Scrambled eggs, oh my baby how I love your legs”.




Lição 1 A qualidade infelizmente não é percebida sem a chancela do “poder”

(Spoilers leves – do começo do filme)


No começo, quando o personagem principal de Yesterday, Jack Malik, começa a tocar as músicas dos Beatles, ele espera que as pessoas se empolguem com elas. Ele sabe que são canções que sobreviveram ao teste do tempo e muitas consideradas são parte do cânone do rock. No entanto, ninguém parece notar a genialidade delas, o que deixa o protagonista frustrado. Uma pessoa que tem bom ouvido para música, no caso, um profissional, reconhece a qualidade do que está ouvindo e consegue fazer a ponte entre o cantor e as pessoas com poder para fazer com que seja ouvido (leia-se famoso, e consequentemente rico). Isso é muito verdadeiro no mercado editorial e é por isso que conheço dezenas de escritores tão bons quanto os best-sellers, que ainda são desconhecidos. Aqui vem a segunda parte da lição: não é porque um artista não teve reconhecimento que ele não merece sua atenção. E se você tem poder, plateia e influência, é seu dever recomendar artistas que admira.


Lição 2 Esperar sempre o pior das pessoas é uma projeção do pior em nós mesmos.

(Spoiler forte que estraga o plot twist, mas vou indica-lo antes de aparecer com este aviso **spoiler time**, então pode continuar lendo)


Parece frase de auto-ajuda, mas é verdade. Sempre partir do pressuposto de que o outro faz o que faz por motivações podres é admitir que as primeiras motivações que vêm à sua cabeça são ruins – você está longe de pensar em altruísmo, abnegação, caridade, senso de responsabilidade e admiração genuína.


**Spoiler time** No filme, há um momento em que o protagonista tem certeza que outras pessoas sabem o que ele fez, que duas delas também se lembram dos Beatles e sabem que ele roubou as canções do grupo e está fazendo sucesso com elas. À medida que a culpa dele aumenta – e sua vida começa a ficar complicada porque ele está se afastando de quem realmente é – essas duas pessoas aparecem com mais frequência. Até que vão visita-lo e ele se entrega e admite que errou. E é nesse momento que você pensa “que filme foda”, porque os dois de fato se lembram dos Beatles e eram fãs da banda, mas não estão ali para desmascará-lo, e sim para agradecê-lo por ter entregue essas canções para o mundo e não deixar com que fossem esquecidas. **Final do spoiler**


Há um momento na minha vida em que me lembro de ter sido interpretada de forma muito cruel. Eu fazia um trabalho de caridade quando morava em São Paulo. Por cerca de um ano e meio, todos os domingos, eu e um grupo de umas doze pessoas levávamos marmitas para cerca de 100 moradores de rua numa rota pré-determinada. Era um trabalho com alguns riscos, porque acontecia no domingo à noite em zonas muito perigosas. Por outro lado, nos sentíamos seguros com os sem-teto, que já conheciam a gente e nos tratavam com muito respeito. Quando eu entrei no grupo, percebi que não havia arrecadação de dinheiro – todas as refeições eram bancadas em forma de “vaquinha” pelo grupo. Por causa disso, eram refeições como arroz, feijão e salsicha. Eles não distribuíam água nem frutas, porque obviamente isso encarecia o rolê.


Eu dei a ideia de levarmos água, também, e o pessoal topou. Mas logo vimos que para fazer refeições melhores, precisaríamos de um pouco mais de dinheiro. Então eu montei um blog e fui espalhando para as pessoas que estávamos fazendo esse trabalho. Para isso, eu precisava tirar fotos da equipe cozinhando, entregando as comidas para o pessoal, etc. Com as fotos no ar, as doações começaram a entrar. As refeições passaram a ter carne e frango e às vezes conseguíamos fazer outros pratos, como estrogonofe. Além da água, passamos a entregar sobremesas como saladas de frutas e bolinhos. Na Páscoa reunimos mais de cem ovos para as crianças, no inverno dezenas de cobertores e numa determinada campanha que montei com a ajuda do blog, 40 kits higiênicos (com papel higiênico, xampu, sabonete, absorvente, escova e pasta de dente). Era a divulgação que impactava positivamente as vidas daquelas pessoas que não estavam cometendo crimes, tinham crianças pequenas e não podiam esperar que o governo fizesse o trabalho dele, porque a fome não espera a política.


Num belo dia, lá estávamos, distribuindo as marmitas. Eu escuto um berro do outro lado da rua. Era fim de tarde e parecia que o mundo estava dourado, e virei meu rosto para descobrir quem havia gritado. Era uma senhora, irada, atravessando a rua e gesticulando. Eu finalmente discerni o que ela estava berrando: “Se fosse mesmo por caridade vocês não estariam tirando fotos!”. Ela simplesmente deduziu que éramos tão feios por dentro quanto ela. Eu ignorei. Aquelas fotos não iam para as redes sociais (era 2012, eu nem conhecia o Instagram e não postava as fotos no meu Facebook pessoal, só no perfil da página do projeto), e eu nem estava nas fotos. A maior alegria daqueles moradores de rua, por sinal, era justamente ter fotos deles mesmos. Eles nos imploravam para imprimir algumas, porque muitos não tinham nenhuma foto de si. Então na boa? Foda-se a mulher raivosa do outro lado da rua, assim como foda-se gente raivosa do outro lado do teclado.


Lição 3 Um dos maiores prazeres da vida é estar com pessoas que amam o que amamos.

(Spoiler forte que estraga o plot twist. Não leia até a próxima lição se você ainda não viu o filme e quer ver)


Todos conhecemos a situação: você lê um livro ou vê um filme que ninguém mais parece conhecer e fica desesperado para poder conversar sobre aquilo com alguém. **Spoiler time** Logo após a cena descrita na lição anterior, o protagonista percebe que finalmente há duas pessoas que conhecem – e amam! – os Beatles. Quando eles começam a cantar juntos, é justamente o momento em que ele parece mais alegre. Muito mais do que quando consegue o que sempre achou querer – fama e admiração. Isso porque é muito bom estar com quem ama o que amamos, e esse é o maior prazer que qualquer arte pode fornecer: criar conexões entre pessoas. É por isso que às vezes reagimos com tanta frustração quando alguém que adoramos odeia uma banda, um autor, um filme, um livro ou uma música que adoramos: porque de repente, nos sentimos mais distantes dessa pessoa. E é por isso que descobrir “algo em comum” com um grupo é tão bom.**Fim do spoiler**


Lição 4 e a maior de todas as lições.


Essa lição pode parecer um spoiler, mas a verdade é que se você, só de ver o trailer, não sacou que essa seria a mensagem do filme, você é muito ingênuo. Então na zona de spoiler eu vou dar um MEGA spoiler (contar o final do filme). Mas quando ela acaba, não vou falar do spoiler em si, e sim da lição, então você pode continuar lendo.


A lição é: All we need is love. Só precisamos de amor.


**Super thunder spoiler time** no final do filme temos um cara que conseguiu o que todo artista acha que quer: admiração, respeito, reconhecimento, fama, glória e grana. Mas que para conseguir isso, teve que abrir mão do amor da sua vida, sua melhor amiga, a pessoa que o ama por quem ele é, independente se ele tem grana ou é bem-sucedido. Então é claro que ele está num estado de espírito miserável. É aí que ele descobre uma coisinha: o endereço de John Lennon, que está vivo e nos seus setenta anos, numa casinha onde mora com o grande amor de sua vida e está feliz pra caramba. E o protagonista se pergunta se ele está chateado por não ser bem-sucedido, momento em que Lennon responde que é muito bem-sucedido porque teve uma vida muito feliz ao lado de quem ama. **final do spoiler**


Podem ler agora:


As pessoas ficam muito chocadas quando eu falo que no final de 2020 eu vou refletir e fazer um balanço da minha carreira de escritora e que, se eu concluir que todo o meu esforço, desgaste emocional e tempo dedicado a ela não valeu a pena, eu vou parar de escrever e permanecer no mercado editorial trabalhando apenas com o tipo de trabalho que paga minhas contas hoje: editoração, mentorias, tradução e leitura crítica. A reação é sempre de espanto: “mas você chegou tão longe!” Mas muita gente não entende o que eu tive que sacrificar para chegar onde cheguei, que está longe de ser “o sonho do escritor”.


Ninguém consegue manter por muitos anos a quantidade de trabalho e esgotamento mental que eu tenho dedicado à carreira de escritora. O mercado editorial não é para corredores de curta distância, é para maratonistas. E eu como mãe sem rede de apoio na minha cidade, que trabalha e estuda e precisa pagar boletos, não topo ser uma maratonista sem sentir que meu esforço compensa meus sacrifícios. O que isso significa? Que eu tenho uma abordagem prática em relação à escrita. Que sem ela, eu sobrevivo, porque tenho todo o resto. Eu amo minha família, eu sou casada com o meu melhor amigo e o grande amor da minha vida, meus filhos são minha razão e existir e por mais que venham com trabalho e tensão e stress, eu não consigo imaginar sensação melhor do que um abraço deles, um sorriso, um beijo. Quando meus filhos aprendem ou conquistam alguma coisa, isso tem uma intensidade emocional que nenhuma conquista minha consegue igualar. Não existe avaliação na Amazon, fila de fãs, quantidade de likes, elogios de editores ou recorde pessoal de livros vendidos que chegue nem perto de brincar com meus filhos ou dar gargalhadas com meu marido ou dormir com os pés tocando os dele. Nem remotamente perto.


Eu não sou ingrata. Eu realmente agradeço por cada leitor, elogio, evento, sessão de autógrafos, lançamento e amigos que o mercado me deu. Mas se em dezembro de 2020 eu olhar para trás e perceber que foram horas demais, estresse demais, tretas bobas demais para tão pouco retorno, eu vou simplesmente parar. E não tem problema. Estou mais do que contente em ter uma vida “normal”. Eu já tenho coisas demais para precisar ser uma “fodona” do mercado editorial. Ser fodona inclusive seria quase um efeito colateral aceitável para ser lida por mais pessoas e poder viver só de escrita. Eu simplesmente não preciso de nada disso para ser feliz.


All we need is love

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