Vou começar agora em 2020 uma série de posts com o tema "lições de vida dos serial killers". O primeiro post é sobre os efeitos danosos da frase "Ah, se fosse comigo".
A série de posts "Lições de vida dos serial killers" vai misturar experiências pessoais com insights que obtive durante minha longa pesquisa sobre serial killers e o trabalho com essas informações, em especial minha vivência no projeto das Serial Chicks e a escrita dos meus livros. Vou abordar meu ponto de vista sobre algumas questões sociais relacionadas à violência, comportamento e experiência feminina. Espero que sejam textos que vocês possam apreciar.
Todos já vimos a cena. Uma colega chega no trabalho às lágrimas e conta uma ocorrência de assalto, assédio ou qualquer outro tipo de agressão. Alguém vira e já solta o “ah, se fosse comigo eu fazia um escândalo!”, ou “ah, se fosse comigo eu descia o cacete nele.”
Esses dias eu falei sobre meu desconforto ao receber na minha casa um rapaz que ia entregar algumas caixas. Senti-me intimidada pela forma como ele conversou comigo, me olhou, me pediu água e ficou me acompanhando aonde eu ia. Suei frio, para ser sincera, me dando conta do quanto nós, mulheres, somos vulneráveis. Cometi o erro de transformar essa história num desabafo para que os homens ao meu redor se dessem conta do medo que toda mulher sente em situações cotidianas completamente seguras para eles.
Os comentários das mulheres:
“Eu não deixo nem entrar na minha casa.”
“Ah, eu não confio assim não, homem aqui não entra!”
“Não tinha como você sair e buscar essas caixas lá fora?”
Eu fico me perguntando como é possível que a pessoa faça um discurso feminista de “nunca culpe a vítima” às 9:00 e às 10:00 faça esse tipo de comentário no post alheio. Em outras palavras, se eu não consegui carregar 6 caixas de livros sozinha, levando todas da portaria do prédio ao elevador e do elevador para dentro do meu apartamento, e aceitei que um entregador com equipamento para isso o fizesse, a culpa só pode ser... adivinhou. Minha.
Eu pensei nas situações em que tive que receber estranhos em casa: técnico de máquina de lavar e aquecedor, zelador precisando verificar alguma coisa, entregadores e montadores de móveis, instaladores... e eu fico desconcertada ao imaginar que se um desses homens me fizesse mal, mesmo em 2020 eu ainda teria que ler, de mulheres e feministas: “ah, mas eu nem deixo entrar.”
Um amigo meu desabafou sobre um caso de fraude hoje pela manhã. Falou sobre um golpe que já lesou centenas de pessoas, ligado a um site da internet. Ele perdeu mais de 15 mil Reais no golpe. Um cara inteligente, produtor cultural. Qual foi o primeiro comentário? “Ah, eu não vendo nada online”.
É aqui que fica impossível não usar a palavra “empatia”. Será que a pessoa que foi vítima de assédio, constrangimento, violência ou golpe precisa mesmo ouvir uma mensagem passivo agressiva de que a culpa foi dela? Criminosos e golpistas são inteligentes e muitas vezes, psicopatas clássicos. Essas pessoas estudam o comportamento humano, as reações impulsivas e os desejos que as motivam e criam uma estratégia para conseguir enganar milhares de pessoas. Nem sempre você vai cair num golpe desses, mas as chances de ser lesado pelo menos uma vez na vida são altíssimas. E não, a culpa não é sua.
Eu sempre achei que minha reação a uma situação de violência seria lutar, e não fugir. Fugir é para fracotes, fugir é para covardes. Bom, eu posso falar com segurança que na nossa imaginação somos muito mais corajosos do que na vida real. Ou nas palavras cantadas em “Head over Heels”, minha música preferida do Tears For Fears: “it’s hard to be a man when there’s a gun in your hand”.
Uma das experiências mais traumáticas da minha vida aconteceu quando eu tinha 18 anos. Eu morava em São Paulo há dois anos, e trabalhava numa escola de inglês a poucas quadras da minha casa. Os professores foram chamados para uma reunião às 19:30 de uma sexta feira. Eu não estava muito no clima para sair de casa naquela noite. Vesti calças jeans, um moletom preto e tênis. Na bolsa, só carregava uma agenda eletrônica (sim, sou velha), lápis e canetas.
Peguei o caminho mais movimentado: a Av. Vereador João de Luca. Eu nunca teria achado aquela avenida perigosa, afinal, havia muita iluminação, uma Blockbuster gigantesca, além da escola onde eu trabalhava, que era grande, também. Quatro faixas de carros, num tráfego intenso típico da cidade e potencializado pelo dia e horário acompanhavam meus movimentos enquanto eu me encaminhava para a reunião.
À minha frente havia um rapaz baixo de uns vinte anos, acompanhado por duas crianças magrinhas de uns doze. Ele virou e me viu. Cochichou algo para os outros dois meninos, que saíram correndo. Eu continuei andando, mesmo quando ele se virou e veio em minha direção. A princípio ele perguntou: “tem algum dinheiro para mim?” e eu não tinha. Enquanto eu ainda tentava entender, ele baixou a voz: “na boa, isso é um assalto, me passa tudo o que você tiver”. Eu abri minha bolsa, atônita, e só encontrei a agenda eletrônica, que entreguei para ele na hora. Mas eu não tinha mais nada.
Foi quando a coisa ficou real. “Na boa, vem aqui comigo”. E ele me pegou pelo braço e me levou para a esquina da rua, onde tinha um pouco menos de iluminação, mas continuava sendo um lugar de muito movimento, em plena avenida. “Você é bonitinha”. Eu comecei a suar, meu coração parecia bombear sangue gelado pelo meu corpo. “Me dá um beijo, vem aqui”.
É nesse momento que, olhando de fora, eu diria: “Menina, ele não está armado. Bate nele, berra, faz um escândalo, luta!” Mas a verdade é que dentro da situação você muda. Eu era um animal atravessando a estrada, paralisada pelas luzes do farol. Minha cabeça não funcionava de forma racional. Foi como se todos os meus instintos de sobrevivência fizessem algum tipo de manual override no meu cérebro e me comandassem remotamente. Eu não conseguia me mexer. Ele me beijou, berrou comigo para que eu beijasse “direito”, passou a mão em mim.
O que ainda me dá raiva é que eu estava chorando a essa altura, e os homens que passavam viam aquilo e simplesmente não se metiam. Não olhavam duas vezes. Briga de namorados, tenho certeza de que se convenceram que era algo do tipo. E tudo o que eu queria era que algum fosse macho o suficiente de perguntar: “tá tudo bem?”
Ele agarrou meu braço e falou: “Vamos para um lugar mais calmo” e foi quando eu falei a primeira coisa que se passou pela minha cabeça: “Não me machuca, eu estou grávida.”
Ele olhou para mim, deu uns passos para trás e falou “mostra”.
Veja bem, aos 18 anos, eu era um palito de tão magra. Mas eu não sei o que aconteceu. Eu estufei uma barriga de adolescente e ela convenceu. Ele me deu um tapa e disse “cai fora daqui”.
Eu andei daquele jeito meio corrido até chegar, ofegante e com o rosto vermelho molhado de lágrimas, na escola. A coordenadora me deu conforto. E eu nunca mais quis ir trabalhar a pé. Para ser sincera, só fui voltar a andar a pé por São Paulo quando comecei a fazer karatê, aos trinta e três.
Essa história serviu para me lembrar de nunca deduzir a forma como eu agiria em determinada situação. É claro que sou culpada de ter falado “ah, se fosse comigo...” algumas vezes. Mas hoje eu me policio diariamente para não fazer isso. A verdade é que se fosse comigo, eu não faço a mínima ideia se agiria como uma verdadeira Sarah Connor ou como a Cláudia de 18 anos. Eu realmente não sei. Então não julgo amigo algum por não ter incorporado o John Rambo numa situação de assalto.
Situação de vida: violência, assédio, golpes
Lição do serial killer: psicopatas são programados para analisar as pessoas. Eles estudam comportamento, reações, gatilhos. Eles exploram as fraquezas e anseios das pessoas “normais” com o único intuito de tirar proveito delas. Eles colocam você numa situação confortável, estabelecem certo grau de simpatia, fazem você achar que tudo foi ideia sua e que dizer “não” levaria à perda de uma oportunidade incrível. Quando você percebe averdade, já foi lesado. Você pode se armar, pesquisar, ficar esperto, mas sempre haverá um dia em que você baixou a guarda. Se isso acontecer, só significa que você é humano e faz parte da vida se foder de vez em quando.
Nenhuma mulher, não importa a idade ou onde ela esteja, vai se sentir 100% segura com um homem estranho. Estupros acontecem dentro de igrejas, ônibus escolares, asilos, escolas e dentro de casa. E acontecem em taxas tão absurdas que é um milagre não termos todas enlouquecido. Mas a vida exige situações onde você estará sozinha com um homem estranho, por mais que tente evitar. Proteja-se como puder. É melhor correr o risco de ser mal-educada do que sofrer algum tipo de violência. E lembre-se que não importa o que aconteça, a culpa nunca é da vítima.
Não aceite ouvir “Ah, eu nunca confio nessas coisas” ou “Ah, se fosse comigo...” de uma pessoa que não viveu aquela situação.
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