Post originalmente publicado na newsletter Crime Scene Lovers
Todos somos culpados do guilty pleasure de consumir séries, filmes e livros de True Crime. Aliás, é esse apetite que reuniu os mais de 1.150 assinantes deste newsletter. É bem provável que você já tenha, entre um balde de pipoca e outro durante um episódio de Mindhunter ou Making a Murderer, questionado a ética e a moralidade de estar curtindo essas histórias de crimes reais, cometido por assassinos reais... contra vítimas reais.
Em primeiro lugar, se esse questionamento já passou pela sua cabeça, parabéns! Você provavelmente tem curiosidade pelo lado escuro do ser humano, mas também é capaz de sentir empatia pelas vítimas e suas famílias. Você se interessa por pessoas como Ed Kemper e Elizabeth Bathory, mas não com intuito de endeusá-las, e sim motivado pela curiosidade de entender os mecanismos da mente de uma pessoa capaz de matar por prazer.
A matéria da revista Time chamada “The Human Cost of Binge-Watching True Crime Series”(O custo humano de maratonar séries de true crime) faz um argumento contundente contra o fascínio pela mídia de True Crime, apontando como principal razão o sofrimento das famílias das vítimas, que não conseguem vivenciar um luto “normal”, uma vez que é quase impossível escapar da morte trágica de seus entes queridos, presente na internet, na televisão, nos serviços de streaming e até nas livrarias. Uma das críticas da matéria é o quanto empresas como o Netflix e a HBO têm investido em séries como I Am a Killer. A autora do artigo, Melissa Chan, alega que o documentário mostra a assassina de um rapaz chamado Robert Mast de um jeito favorável e cheio de simpatia. Isso não é verdade. De fato, os produtores deixaram a assassina do episódio, Lindsay Haugen, fazer o teatro dela, mas logo em seguida mostraram os vídeos da confissão da garota e os depoimentos dos investigadores, deixando bem claro o tipo de covarde manipuladora que ela é. O episódio vai além, também desmascarando os pais da vítima, que ganharam bastante fama e dinheiro viajando pelos Estados Unidos pregando o perdão em palestras de cunho religioso e usando o ótimo relacionamento deles com Haugen como prova das pessoas “evoluídas” que são.
Eu particularmente vejo uma veia jornalística séria e ética na maioria das séries e livros de true crime que têm surgido nos últimos anos. Não dá para negar que somos atraídos pelos crimes brutais e a tragédia humana que esses programas oferecerem, mas a narrativa dos mesmos acaba nos levando ao desejo de ver os criminosos punidos e à reflexão sobre o papel das famílias, das autoridades e da sociedade na construção desses crimes. No mesmo I Am a Killer, há uma denúncia seríssima de autoridades com provas de crimes de pedofilia que simplesmente as ignoraram, permitindo que as crianças expostas continuassem vivendo no lar do homem que abusava delas e que inevitavelmente levou ao crime cometido por uma delas. Em Making a Murderer, a denúncia contra a polícia é explícita. Em Don’t F*** With Cats, os heróis são pessoas comuns interessadas em true crime, como nós, que se revoltaram com os crimes absurdos cometidos por Luka Magnotta e caçam o assassino, sendo os grandes responsáveis pela resolução do caso. No novíssimo Condenados pela Mídia, o papel do jornalismo na manipulação da opinião pública e subsequentes vereditos dos julgamentos de crimes de alto perfil são a pauta principal.
O interesse por crimes e criminosos, na maioria das vezes, é o interesse em ver a ordem reestabelecida no mundo e a vitória dos mocinhos. Eu sinto que enfrentamos os depoimentos chorosos, as cenas de crimes e os rostos dos assassinos para chegar a uma resolução que restaura nossos batimentos cardíacos e nos faz suspirar de alívio. Aquele sorriso que damos ao ver um serial killer de macacão laranja sendo algemado e levado para a prisão talvez venha de um desejo híbrido, de algo entre vingança e um brutal desejo por um mundo mais justo.
Foi a obsessão de Michelle McNamara, por exemplo, que levou a escritora a perseguir o Golden State Killer e escrever o livro Eu terei sumido na escuridão. Não podemos ignorar que Michelle foi a fundadora do site TrueCrimeDiary. Em outras palavras, era uma de nós – uma aficionada por True Crime que se importava com as vítimas e tinha um profundo desejo de ver os criminosos atrás das grades.
Eu paro e pergunto, às vezes, como eu me sentiria no lugar da mãe de uma vítima, tendo de testemunhar os detalhes sórdidos do crime que acabou com minha felicidade. Eu penso em mulheres e homens que viveram seus piores pesadelos de forma tão pública, como a mãe da Isabella Nardoni. E no final, com o coração sangrando, eu chego a apenas uma pergunta: qual é o saldo para nossa humanidade? Ou seja, as obras de True Crime estão informando o público? Estão disseminando conteúdo que nos leve a aprender, refletir e sermos instrumentos de mudanças reais contra a violência? Isso, cabe a você julgar.
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